Escrituras, Evangelho e Salvação

Posted on março 5, 2007

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“Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não houver quem pregue?”
Rm.10.14

As palavras do apóstolo revelam uma progressão lógica fatal para a idéia de que alguém na idade da razão pode ser salvo sem ouvir o Evangelho. Na verdade, afirmar que aqueles que nunca ouviram as boas novas podem ser salvos por meio da contemplação da natureza levanta sérias dúvidas sobre a real necessidade da revelação especial de Deus – A Bíblia Sagrada – e a mensagem evangélica. Afinal de contas, se o homem pode ser salvo apenas por meio da natureza, segue-se que as Escrituras já não são tão necessárias, se é que permanecem necessárias neste contexto.
Ouso afirmar que este posicionamento existe porque pensamos ser injusto Deus criar homens que Ele sabia que não teriam acesso ao Evangelho, e ainda condená-los por não crer. Uma compreensão débil de alguns textos bíblicos também facilita a existência deste posicionamento. Outro fator que explica a sua existência é a confusão existente no que diz respeito à Revelação Geral – a Natureza – e a Revelação especial.
Quando analisamos estes fatores, torna-se mais fácil entender o posicionamento dos que defendem a idéia de uma “salvação sem Evangelho”, embora isto ainda seja incoerente com o cristianismo, que está fundamentado no Evangelho de Cristo. Cabem, então, algumas notas sobre estes aspectos.
A confusão sobre a natureza e as Escrituras como revelação de Deus revela a fraqueza de nossas memórias e nossa ignorância sobre a história da Igreja. É vergonhoso dizer isto, mas infelizmente esta é uma triste realidade. Uma “olhadinha” na internet, caso houvesse preguiça de pesquisar em livros, seria suficiente para nos mostrar o pensamento da Igreja Cristã quanto ao assunto. A Confissão de Fé Batista de 1689, por exemplo, traz logo no primeiro parágrafo do seu primeiro capítulo o seguinte texto:
A Sagrada Escritura é a única regra suficiente, certa e infalível de conhecimento para a salvação, de fé e obediência. A luz da natureza, e as obras da criação e da providência, manifestam a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, de tal modo que os homens ficam inexcusáveis; contudo não são suficientes para dar o conhecimento de Deus e de Sua vontade que é necessário para a salvação.

A Confissão de Fé de Westminster declara quase em palavras idênticas a mesma verdade, e a confissão Belga, em seu artigo segundo, afirma que a criação, manutenção e governo do mundo “são suficientes para convencer os homens e torna-los indesculpáveis”, mas é por meio da Palavra que Deus opera “para sua glória e salvação dos que lhe pertencem”. A pergunta 19 do Catecismo de Heidelberg questiona como sabemos alguns dos aspectos relacionados à salvação descritos nos pontos anteriores, e a resposta é direta: “Pelo santo evangelho(…)”, ou seja, nossa salvação não pode acontecer simplesmente pela contemplação da natureza porque esta é uma revelação incompleta no sentido de ser apenas suficiente para nos deixar indesculpáveis, mas não conhecedores de aspectos essenciais, como o pecado, a vinda de Cristo, a necessidade de fé e arrependimento, e de uma vida conforme a Lei do Senhor. Como falar em salvação de pessoas na idade da razão sem estes pontos?
Pela breve observação de alguns documentos históricos da Igreja, fica mais claro o papel da revelação geral e da especial. Um pouquinho de conhecimento histórico não faz mal a ninguém, pelo contrário, é de grande proveito.
A dificuldade é que podemos cair no erro de estarmos seguindo apenas tradições estabelecidas, sem questioná-las à luz das Escrituras. Quem tem uma cópia destes documentos citados sabe que junto às declarações estão os textos bíblicos que fundamentam tal pensamento, e assim o problema é resolvido. De qualquer forma, nem todos os têm, então é importante percebermos como a Bíblia descreve o assunto.
Provavelmente o texto mais claro sobre o assunto está no primeiro capítulo de Romanos. O apóstolo Paulo mostra a trajetória do homem que conhece a Deus apenas por meio da natureza. Ele pode conhecer atributos invisíveis, como o eterno poder e a natureza divina de Deus, e isto é suficiente para torná-lo indesculpável (v.20). Contudo, tal pessoa prefere adorar a criatura, ofendendo o Criador (v.23).
O apóstolo Paulo mostra mais claramente a incapacidade de haver salvação sem o Evangelho no capítulo 10. “Como crerão naquele de quem nunca ouviram falar?” – pergunta o autor, inspirado por Deus. Não precisamos ser muito inteligentes para perceber os links e implicações deste texto, basta apenas saber ler. Em primeiro lugar, reconhecemos a necessidade de crermos em Cristo para a salvação. Sem fé em Cristo não há salvação (Rm.10.9). Seguindo esta linha, Paulo faz uma pergunta retórica, demonstrando ser impossível crer em alguém de quem nunca se ouvir falar. Agora percebamos a verdade aqui apresentada. No primeiro capítulo ele afirmou que a natureza é suficiente para tornar Deus conhecido, e agora afirma que é impossível crer em Cristo se Ele não for pregado. Certamente o apóstolo apóia a idéia de que, sem o Evangelho não há de se falar em fé e, logicamente, não se pode falar em salvação.
A história e a Bíblia já mostraram como a “salvação apenas pela natureza” é incoerente. Contudo, existe ainda o argumento da justiça de Deus. As pessoas que defendem ser o homem possível de salvação mesmo sem ouvir o Evangelho dizem que seria injusto da parte de Deus criar alguém e condená-lo por não crer, se Ele nunca deu a este homem a oportunidade de ouvir o Evangelho.
“Se Deus não deu a eles a oportunidade de ouvir o Evangelho, e se Ele seria injusto ao condená-las por isto, segue-se que é possível o homem ser salvo sem ouvir a mensagem evangélica” – isto sintetiza o seu raciocínio.
Não é preciso muito para ver que o pensamento está “de trás para frente”. Tais pessoas partem de suas concepções a respeito de justiça, e as impõem sobre Deus, como se Ele tivesse a obrigação de ser justo conforme suas mentes limitadas.
Não é injustiça de Deus condenar alguém que nunca teve a oportunidade de ouvir o Evangelho. Tal idéia soa estranha a nós, mas é somente por nossa pecaminosidade, e não por alguma falha em Deus. “Não me é lícito fazer o que quero do que é meu?” – poderia perguntar o Altíssimo a pecadores insolentes como nós. De fato, a Bíblia é ainda mais clara quanto ao assunto. Em Provérbios 16.4, por exemplo, está escrito que “O Senhor fez tudo com um propósito; até os ímpios para o dia do castigo”. No livro de Êxodo, e em Rm. 9, Deus demonstra como levantou o Faraó para glorificar o Seu nome, utilizando-o conforme a Sua vontade, endurecendo, inclusive, o seu coração. 1 Pe.2.8 fala de homens que foram destinados para desobedecerem à mensagem. Isto significa que a idéia de Deus criar homens e condená-los não é estranha às Escrituras.
Outro fator que derruba tal linha de raciocínio é que a Bíblia apresenta Deus como justo por definição. Tudo o que Ele faz é justo. Se Ele decidiu criar alguém, e decidiu condenar esta pessoa sem que ela tivesse a oportunidade de ouvir o Evangelho, isto ainda seria um ato justo de Deus, porque Ele é justo. Não é a nossa concepção de justiça que se coloca sobre Deus, mas a definição bíblica que permanece como palavra final.
Por fim, uma das maiores fraquezas deste raciocínio é que ele parte de concepções extra-bíblicas. A Bíblia não é considerada em primeiro plano, pelo contrário, ela é deixada em um lugar secundário, sendo lembrada apenas para constar, já que são os nossos pensamentos que regulam nossa forma de ver Deus. Pensamos que Deus seria injusto se agisse como a Bíblia descreve, e logo criamos uma doutrina anti-bíblica, tentando encaixá-la nas Escrituras distorcendo os atributos do amor e misericórdia de Deus, bem como abandonando a Sua justiça e soberania. O que temos como resultado disto é um Senhor que não é nem amoroso, nem misericordioso (porque estes atributos foram descaracterizados), nem justo, nem soberano. Além do mais, Deus não precisa dos nossos esforços para torná-lO mais agradável aos que nos ouvem, ou a nós mesmos. Ele é Deus, e isto basta.
Temos, por fim, a consideração de que é a verdade que liberta. É a pregação do Evangelho que Deus usa para dar fé aos homens. É através das Escrituras que Deus se revela na salvação de pessoas. Enquanto abandonarmos a Verdade, não haverá salvação. Quando diminuímos o poder das Escrituras e do Evangelho, revelamos que nossa própria fé nestes itens necessita de fortalecimento.
Seja Deus gracioso, e nos dê uma visão cada vez mais clara de Sua Palavra e Sua Graça, para que sejamos fiéis em nossa maneira de pensar, crer, e viver.

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