O que ninguém vê

Posted on fevereiro 18, 2016

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Talvez você já tenha visto essa foto no facebook:

2016-02-15 21.02.25

Se eu tivesse que escolher uma legenda para ela, seria: “glória”. Se eu tivesse que escolher outra legenda, seria: “ilusão”.

Explico: a foto é da cerimônia de formatura do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (CPAJ), ocasião na qual recebi o meu diploma de Sacrae Theologiae Magister (Mestre em Teologia Sagrada, ou STM), com concentração em teologia filosófica.

Foi, de fato, um momento de glória. Os mais preciosistas podem ficar ofendidos com a palavra — “somente Deus pode ter glória”, dirão. Mas o sentido aqui é outro. É glorioso concluir uma etapa e ser aprovado ao final dela. É glorioso carregar o sinal de sua aprovação em mãos, e recebê-lo dos seus mestres. É glorioso saber que o esforço valeu a pena.

Mas a glória é só metade da história. Talvez menos da metade. Por isso escolhi a outra legenda. Essa imagem também é ilusão, pois engana o observador externo. Embora muito esteja revelado ali, existe aquilo que ninguém vê.

Especialmente na era das redes sociais, o uso de imagens funciona para a criação de mitos e ilusões de sucesso, na “venda” de si como um produto a ser apreciado e desejado. Hoje eu escolho não me vender como um homem de “sucesso”, e ser um pouco mais real.

Quem vê a foto pode ficar com a impressão de uma trajetória brilhante, da glória acadêmica, da conquista dos sonhos, do domínio intelectual ou qualquer coisa desse tipo. Então deixe-me lhe contar uma história:

Eu escolhi a teologia filosófica por ter lido alguma coisa do Francis Schaeffer e ter me apaixonado pela leitura. Na verdade, comecei lendo “A morte da razão”, e não entendi NA-DA. Deixei o livrinho na prateleira, chocando por algum tempo. Descobri “O Deus que intervém” perdido em uma livraria e decidi levar. Meus olhos viram a luz! Lendo “o Deus que intervém”, pude seguir para “a morte da razão” e “o Deus que se revela” — a famosa trilogia do Schaeffer —, sem falar nos outros títulos publicados em português.

Eu ainda não tinha lido tanta coisa assim de Schaeffer. Mas já amava a sua proposta. E achava que a área de concentração mais próxima das coisas que ele discutia era a teologia filosófica. Comecei o curso, e descobri que só a minha leitura de Schaeffer não era sequer perto do suficiente. Logo no segundo módulo que cursei — epistemologia reformada — eu tive a sensação de estar no lugar errado. Novamente, não entendi NA-DA. Havia — e ainda há — muito o que estudar.

Algum tempo depois, cursei uma disciplina sobre Cornelius Van Til. O professor, o Rev. Davi Charles Gomes, anunciou que aquele não era um módulo de introdução, mas um estudo avançado sobre o apologeta em questão, e deixou claro que a demanda seria alta. Tudo isso na primeira aula. Ao fim daquele momento, procurei o professor em privado para dizer: “I don’t have what it takes” — “acho que não consigo alcançar o nível exigido nesse módulo”. Fui pastoreado — como sempre aconteceu naquele centro — e recebi o insight para investigar um tema em comum entre Van Til e Schaeffer. Essa foi a semente da minha dissertação.

O meu ponto aqui é demonstrar que, se a imagem anuncia glória, ela também esconde toda a fraqueza presente nos anos de estudo. As múltiplas demandas, somadas à minha dificuldade de organização me fizeram entregar os trabalhos em cima da hora; a distância entre a minha cidade e o centro dificultou o acesso a títulos que eu deveria ter lido mais e melhor; o cansaço nas viagens que tomavam a madrugada para chegar e correr para a aula me fez encontrar dificuldades de concentração, dentre tantos outros dilemas.

Mas o maior provavelmente foi a escrita da dissertação. Aqui não houve glória. Demorei algo em torno de dois anos para concluir o trabalho. Não consegui administrar adequadamente as demandas da plantação de uma igreja e de leituras e escrita. Não disse “não” quando deveria. Experimentei dois longos anos de dificuldades em tudo o que envolvia esforço intelectual, porque estava sempre diante de mim o vulto assustador de um trabalho não concluído. Li livros com dificuldade. Preparei sermões com dificuldade. Aconselhei com dificuldade. Vivia com a sensação de que estava sempre “behind the schedule” — sempre atrasado nas minhas demandas. Fiquei exausto.

Com um ritmo tão devagar, perdi meus prazos. Passei a contar com a misericórdia da Câmara de Pós-Graduação do CPAJ. Ela veio, e consegui um prazo extra. Mas eu conseguiria cumpri-lo? No fim da reta dei um “tiro” e corri para escrever e defender a dissertação. Como resultado, o trabalho perdeu qualidade, pois a pressa comprometeu algumas etapas. Minha banca indicou os aspectos nos quais o texto poderia melhorar.

E assim chegamos à imagem. Ali existe glória. Mas existe uma história que fica oculta, e deveria ser revelada, para que ninguém se iluda. Qual é o meu objetivo com tudo isso? Um deles, já anunciado, é revelar algo mais real sobre mim do que a imagem pode oferecer. O outro é apontar para essa faceta da vida humana anunciada nas linhas acima: a glória vem misturada com o sofrimento. A vida é assim. Enfatizar apenas a luta desses anos seria perder de vista a alegria incomensurável que Deus me proporcionou através do CPAJ. Enfatizar apenas a glória seria fechar os olhos para a dura caminhada que me abateu, mas também me fez valorizar amplamente o diploma que recebi. No fim das contas, em meio à glória e ao sofrimento, somos testemunhas de uma graça que nunca tem fim, e que nos faz perseverar.

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