Cartas a meu filho, 2: não fuja da morte

Posted on março 25, 2016

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Filho, não fuja da morte

Filho, hoje fui ao funeral de um senhor querido. Se vocês tivessem se conhecido, eu o apresentaria como um tipo de avô para você. Ele não é exatamente seu avô, mas cuidou bastante de mim na infância. O nome dele é Paulo, e ele é o pai dos seus tios Paulo, Saulo e Pablo.

Na minha infância, o Sr. Paulo e a sua quase-avó Cristina eram os melhores amigos dos seus avós Afonso e Iris. E eu era praticamente irmão de Paulo, Saulo e Pablo.

Todos os domingos eu ia para a casa deles, e brincávamos bastante até a hora de ir para a igreja. O sr. Paulo era um homem bastante animado, especialmente após o encontro de casais com Cristo, quando descobriu sua paixão musical, e passou a tocar o atabaque. Ele cantava alto e marcava o ritmo das canções empolgadamente.

Mas desde ontem nós vimos um homem em silêncio. No caixão estava o corpo do Sr. Paulo, inerte. Estranha e terrivelmente silencioso.

A morte não é algo natural, filho. Nós fomos criados para desfrutar da vida. Mas o nosso pecado causou esse grande símbolo de ruptura. A morte espiritual é a desintegração do nosso relacionamento com Deus, e a morte física é a desintegração do nosso corpo – a separação entre corpo e alma. A vida que animava nossas ações não está mais ali.

Não posso mentir, filho, a morte é feia e dolorosa. Agora mesmo o seu pai sente um incômodo aperto no peito. E eu não tinha mais um contato tão próximo com o Sr. Paulo. Cristina e seus filhos devem estar sentido um aperto muito maior. Também por eles é a minha dor. A morte nos choca e escandaliza, nos confunde e desanima.

Mas não fuja da morte.

As pessoas dos nossos dias fogem de todo mal-estar. Eu mesmo sou assim. Alguns chamam a nossa época de “terapêutica”, porque o valor fundamental é esse bem-estar. Quando essa é a nossa preocupação final, tendemos a afastar aquilo que nos incomoda, tendo pouco ou nenhum contato com as coisas ruins, difíceis e dolorosas da vida. Isso faz com que casamentos durem pouco tempo em nossos dias, faz com que os jovens não perseverem em situações difíceis na faculdade ou no serviço, e fez com que afastássemos a morte do nosso horizonte.

Se a morte choca por não ser natural, nós pioramos a situação por fugir dela. As pessoas da nossa época evitam pensar e falar sobre a morte. Os velórios, antes realizados nas casas, agora têm seus espaços oficiais. E os mortos são enterrados longe da família. Talvez isso fosse inevitável com o desenvolvimento das cidades, mas o fato é que serviu bem aos propósitos de fugir da morte.

Nossas canções antigas falavam da preparação para a morte e da expectativa do porvir. São muitos os hinos nos quais você encontrará referências à morte. Jamais abandone tais hinos. As músicas atuais estão preocupadas demais em descrever sensações e caminhar para o prazer, sem considerar a realidade do sofrimento no mundo.

Não é preciso fazer muito para fugir da morte hoje em dia. Na verdade, não é preciso fazer nada: basta viver conforme o curso comum da sociedade, e você terá evitado todas as questões difíceis, exceto quando algo acontecer a você.

Mas não fuja. Pelo contrário, dedique seu coração a encontrar a alegria que somente Deus proporciona, mas também a pensar e se preparar para a realidade mais difícil da nossa caminhada: a separação que a morte realiza.

Seria esse um exercício masoquista, uma penitência? De maneira nenhuma. O valor aqui não está em meramente sofrer, mas em ter um coração preparado para não perder a esperança na hora do sofrimento.

Por difícil e doloroso que seja, pense sobre a morte. Considere quão limitados são os nossos dias, e quão pequenos somos nós. Sinta a nossa fragilidade e tenha a convicção de que não temos nenhum poder sobre nossa existência.

Sr. Paulo. Montagem copiada do facebook da Igreja Batista Getsêmani

Sr. Paulo. Montagem copiada do facebook da Igreja Batista Getsêmani

Isso vai tirar o seu fôlego. Mas também vai te dar nova perspectiva.

Sim, porque a agonia da morte deve ser vencida com a esperança do evangelho. A morte é dolorosa e difícil, mas foi vencida na cruz. Outro Paulo, o apóstolo, pergunta: “Onde está, ó morte, a sua vitória? Onde está, ó morte, o seu aguilhão?” (1Co.15.55). E ele mesmo responde: “Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Co.15.57). Embora a morte seja assustadora, ela não tem a palavra final sobre nós. A morte foi vencida na cruz de Cristo, e isso traz nova luz sobre o fenômeno.

A morte que traz desintegração também é uma vocação, um chamado do nosso Deus para O encontrar. Ela é resultado do pecado, mas o seu poder foi vencido pelo Redentor, de maneira que eu e você podemos até responder como o apóstolo Paulo, que desejava logo partir para estar com Cristo (cf. Fp.1.23,24).

Veja como as coisas mudam: o fato de não fugirmos de olhar a dor nos olhos vai limpando a nossa visão, até enxergarmos e sentirmos a graça de Deus nos guiando em meio ao sofrimento. Haverá dor, mas também esperança.

Por isso filho, não fuja das questões difíceis. Não fuja da morte. A esperança do evangelho nos dá nova perspectiva.

O corpo do Sr. Paulo fazia um silêncio terrível. Mas a realidade por trás é que agora ele está diante de Deus em celebração. Toda a alegria experimentada aqui, apenas em sombras, é agora desfrutada na incomparável presença de Deus.

Existe uma verdade que ainda coroa esta percepção. Você deve lembrar de estudarmos o Credo apostólico (se não lembra, essa é uma boa hora para visitar a minha biblioteca e começar a estudar o Credo). Lá no fim da declaração nós temos uma belíssima linha:

Creio no Espírito Santo;
na santa Igreja universal;
na comunhão dos santos;
na remissão dos pecados;
na ressurreição do corpo
e na vida eterna. Amém

Você entende o significado disso, filho? Dentre os vários aspectos, repousa o fato de que Deus nos quer por inteiro diante de Sua face. Assim, não seremos apenas almas etéreas vagando num espaço cósmico, mas o nosso corpo será ressuscitado e reunido a nossa alma! Por causa da cruz de Cristo, toda a desintegração presente no mundo será desfeita. O corpo inerte voltará à vida!

O dia hoje foi de olhar a morte nos olhos. E chorar. Curiosamente, a tradição cristã nos diz que foi isso o que aconteceu há dois mil anos, pois hoje é a sexta-feira santa. Os discípulos de Jesus viram o seu Senhor crucificado e morto. O Céu irrompeu em terrível cinza, e o lamento se fez ouvir por Jerusalém. Os discípulos ficaram confusos e amedrontados. Mas aguarde três dias e você verá novo brilho no olhar. Jesus ressuscitou, e a Sua ressurreição é o testemunho de Sua vitória, bem como a garantia da ressurreição dos Seus filhos. A confusão e dor dá lugar à esperança.

Não fuja da morte, e você encontrará a esperança. Por causa de Jesus, o Sr. Paulo não é um passado, mas um presente pleno.

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