Seja prático

Posted on junho 16, 2016

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Se você leu “com vergonha do evangelho”, de John MacArthur, sabe qual é um dos maiores inimigos da igreja desde os dias de Spurgeon: o pragmatismo.

Há várias maneiras de considerar a questão, mas, numa tentativa de simplificar — talvez caindo no simplismo —, o pragmatismo aplicado ao contexto das igrejas é a proposta que estabelece como princípio fundamental a busca por aquilo que “funciona”. É claro que o “funciona” sempre é relativo às expectativas e valores de quem considera a questão. Via de regra, “funcionar” tem a ver com encher a igreja e dar aparência de sucesso ao ministério. Aquilo que encher a igreja, portanto, é válido para o pragmático.

Os reformados ficaram cientes desse problema logo cedo. MacArthur demonstra como Spurgeon já lutava contra a idéia de transformar a experiência com Deus em mero entretenimento para ter mais pessoas na igreja. Passamos a combater o pragmatismo com todas as nossas forças — a obra de Deus é realizada pelo poder do Espírito, não por nossa tecnologia.

Mas talvez a rejeição do pragmático tenha levado consigo o prático. Em nome do “poder do Espírito Santo”, deixamos de pensar e realizar as pequenas tarefas que são nossa responsabilidade, em um exercício de espiritualização mais prejudicial do que benéfico.

O alcance da igreja a novas pessoas pode ser considerado assim. Passamos a olhar com suspeita qualquer abordagem diferente para aproximar pessoas, possivelmente com medo de cair no pragmatismo. Não estou falando de alterar o culto, não me entenda errado. É que, confortáveis no discurso de que “a obra é do Espírito” e “Deus trará os Seus eleitos”, deixamos de ser intencionais nas abordagens para ir até as pessoas, e para levá-las à igreja. A generalização é proposital; sei que nem todos são assim.

Outra área pouco prática é a da santificação. Aqui talvez o medo não seja de cair no pragmatismo, mas no legalismo. São os legalistas que possuem listas do que é permitido e proibido fazer. Mas o que nos resta? Esperar crescer em santificação sem exercícios e passos práticos diários? Não foi o apóstolo Paulo que nos recomendou a exercitar-nos na piedade? (1 Tm.4.7) Por vezes temos confiado em uma abstração, sem exercícios concretos de crescimento em santidade. O resultado é frustração e pecados recorrentes.

Outra área é a da resolução de conflitos nos relacionamentos. Esse é um desdobramento da santificação, aplicado ao contexto diretamente social. Tenho a impressão de que nossos conselhos para casais em crise ou são absolutamente pragmáticos, do tipo: “compre uma lingerie e seduza o seu esposo”, ou são forçosamente abstratos, do tipo: “o evangelho é a solução para o seu conflito relacional”.

É a mais pura verdade que o evangelho é a chave fundamental para o sucesso de qualquer relacionamento. Mas a questão que precisa ser respondida é: como o evangelho faz isso? Aqui adentramos em um campo que tanto considera a obra completa de Jesus, quanto nos encoraja a ações práticas no dia a dia. Toda boa pregação precisa de aplicação, e acredito que há, de maneira geral, uma desproporção entre informação e aplicação.

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Mas há bons exemplos a nos ajudar. Tenho sido amplamente beneficiado das leituras do pessoal de aconselhamento bíblico1.

Livros como “Os conflitos no lar e as escolhas do pacificador” (Ken Sande e Tom Raabe, ed. Nutra), fornecem uma base bastante sólida no evangelho, bem como abordagens bastante práticas para o crescimento na vida com Deus e na restauração de relacionamentos. O foco do livro é o contexto familiar, mas o catálogo da Editora Nutra, bem como os livros de David Powlison, Paul Tripp e Ed Welch publicados por editoras como a Cultura Cristã e a Batista Regular estão aí para demonstrar a amplitude de alcance dos temas e contextos. Eles sabem ser profundos e práticos.

Permita-me dar o exemplo do livro mencionado. Ken Sande e Tom Raabe estão discutindo os conflitos no contexto familiar, e como é possível resolvê-los. Há uma sólida base estabelecida no evangelho, e na convicção profunda do perdão oferecido pelo Senhor aos Seus filhos. Existe uma compreensão firme da doutrina do pecado e seu impacto sobre nossos desejos. Há uma consideração atenta à realidade dos ídolos que levantamos em nosso coração, e que afetam nossa maneira de pensar, sentir e agir. Há uma esperança intensa no poder do evangelho para redimir nossa vida e relacionamentos. E então há abordagens práticas para lidar com os conflitos.

A certa altura do livro, os autores propõem o princípio da PAUSA2. O contexto imediato é o da negociação para resolver problemas. Diante do conflito de desejos, como um um casal, ou um pai e um filho, podem encontrar caminhos adequados de diálogo e solução? Uma maneira é a negociação, e o princípio da PAUSA é bastante útil.

PAUSA é um acróstico para as etapas da negociação:

Prepare a abordagem
Afirme os relacionamentos
Use de entendimento para compreender os interesses
Solucione com criatividade
Avalie as opções com objetividade e bom senso

Através de um roteiro bastante prático, somos encorajados a planejar a maneira de conversar, reiterar o nosso interesse e compromisso no relacionamento, discernir os interesses em jogo para melhor atendê-los (caso não sejam pecaminosos), ser criativos em listar possíveis soluções para o conflito, e selecionar as melhores maneiras de resolver o problema.

Uma última ressalva é importante aqui. No outro extremo estão aqueles que afirmam a praticidade em detrimento da profundidade. Em nome do “ser prático” acabam por desconsiderar aqueles aspectos que parecem não ter uma aplicação imediata. A justificação de um conhecimento estaria em sua utilidade. Tal compreensão é tão prejudicial quanto a falta de praticidade. Em especial, porque ela promove um tipo de imediatismo nocivo à vida — ela é o primeiro passo para o pragmatismo. Segundo tal compreensão, temas complicados e aparentemente pouco práticos, como a doutrina da Trindade seriam eliminados da discussão. E, em nome da praticidade, pouco se investiria em aprofundar a reflexão — aqui se veria uma oposição entre conhecimento e prática. A busca por praticidade em nossa caminhada com Deus não é um convite à superficialidade.

O que ganhamos sendo práticos? Tiago 1.22 nos diz: “Sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, enganando- se a si mesmos”. Envolver dimensões práticas em nosso ensino nos encaminha na direção de aplicar o que temos ouvido, para não vivermos no engano de que a muita informação recebida é tudo o que importa.

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  1. Aconselhamento bíblico é uma escola de aconselhamento fundada por Jay Adams e desenvolvida por nomes como David Powlison, Paul Tripp, Ed Welch, e instituições como o Christian Counseling & Educational Foundation (CCEF) e o Institute for Nouthetic Studies. No Brasil, os representantes dessa perspectiva são a Associação Brasileira de Conselheiros Bíblicos (ABCB) e a editora Nutra. 
  2. SANDE, Ken; RAABE, Tom. Os conflitos no lar e as escolhas do pacificador. São Paulo: NUTRA publicações, 2011. p.142. 
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